sexta-feira, janeiro 30, 2009

John
Boa parte da literatura de ficção das últimas décadas dedica-se a exorcizar o Século XX. Isto tem provocado uma confusão frequente entre o ofício de escritor e o de sacerdote. Começamos a ansiar pelo exorcismo literário derradeiro - aquele que nos exorcizará de todos os exorcistas.
“Regressa, Coelho” de John Updike, editado em 1971, surge nesta espessa emergência americana de sobreviver aos mil e novecentos. É o segundo de uma série que se iniciara dez anos antes a partir da figura de Harry “Coelho” Angstrom, um cidadão médio como só os americanos sabem ser (no fundo foram eles que inventaram a espécie). Estamos no fim da década de 60 onde há homens a pisar a Lua, brancos e pretos às turras e esposas a trocar os lares por amantes pacifistas.
Como reage Coelho ao seu casamento em demolição, à sua mãe cancerosa, ao seu filho queixoso? Reage reagindo, no conforto imediato que o reaccionarismo oferece. Defendendo a guerra do Vietname, suspeitando dos negros, apiedando-se de Nixon. Não é inesperado que este programa se salde na mais pragmática passividade absoluta. Assim, o seu patriotismo contrasta com a falta de respeito por si próprio. A América torna-se um país que aceita defender sem que ouse habitá-lo. Qualquer fidelidade que proclame revela-se apenas um intervalo para não ter de dar razão aos seus detractores. O que resta da Nação de Harry “Coelho” Angstrom? Um autocolante da bandeira na traseira do automóvel, simultaneamente sumido e persistente.
É esta América da qual quer fugir que lhe vai entrar pela casa adentro. Perfeitamente metaforizada na chegada abrupta de novos hóspedes: uma menor rica em delírios narcóticos e um preto veterano do Vietname com pulmões cheios de marijuana e slogans emancipatórios. Nunca se sabe o que vem substituir uma esposa que bate com a porta.
Updike domina o ofício sacerdotal da escrita assombrada fin-de-siécle: vão-se os demónios, ficam os medos. Esta é também uma história de sexo, fogo e um país à deriva. Se o Século XX não foi isto, não foi coisa alguma.

Publicado numa Time Out do ano passado.

Agora vou ali ler o segundo Updike da minha vida e já volto.

quinta-feira, janeiro 29, 2009

O convívio democrático do Pregador
O pregador do Evangelho não vive isolado na sua campânula de santidade. Antes pelo contrário, ele tem um acesso privilegiado a todo o tipo de pecadores.

quarta-feira, janeiro 28, 2009

Merriweather
Um dos méritos dos Animal Collective (que com os White Stripes e os Lightning Bolt formam a Audio-Trindade dos anos zeros) é conseguir fazer boa música através da pior pose conhecida no roque-enrole: homens atrás de máquinas (já os Kraftwerk o fizeram mas falta-me o estômago para esse pleonasmo desinteressante que é um germânico mecanizado). Os Animal Collective são na maior parte das vezes três ou quatro contabilistas animados por detrás de mesas de mistura, teclados pirosos e, em redentora volta e meia, um par de tambores. Um talento que perfura tão desinspirada silhueta cénica tem de forçosamente ser louvado publicamente.

terça-feira, janeiro 27, 2009

Do sermão de Domingo passado
No Evangelho de Marcos lemos que Jesus passa por Simão e André e desafia-os a serem pescadores mas agora de homens. O versículo 18 do capítulo 1 diz que "eles largaram imediatamente as redes e foram com ele". A resposta instantânea parece colocar a prontidão de Simão e André no campo da irresponsabilidade. Afinal quem segue o convite de um desconhecido assim? Urge averiguar se o modo demorado e reflectido das nossas decisões actuais faz mais justiça a quem somos e ao que precisamos.
Pensar muito não é necessariamente pensar melhor e a preguiça sempre soube proteger-se sob as respeitáveis saias da demora.

segunda-feira, janeiro 26, 2009

De um modo cortês
Mais ou menos assumir que o Iluminismo não foi grande coisa. De um modo cortês, certamente. De um modo cortês.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

Amanhã


A Igreja Baptista de S. Domingos de Benfica receberá os Pontos Negros. Sem electricidade mas plenos de coração. Às dezanove horas.

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Working On A Dream
Sempre os mesmos acordes. Sempre os mesmos xilofones sentimentais. Sempre as mesmas capas péssimas em subtis variações de auto-complacência. Sempre os mesmos optimismos insufláveis ianques. Sempre as mesmas queixinhas de classe média. Sempre a mesma coisa.
Bruce Springsteen não sabe fazer maus discos.

quarta-feira, janeiro 21, 2009

Usa
Enquanto cristão o meu caminho é a santidade mas é difícil resistir ao cinismo quando ouvimos a entronização do Presidente Obama comentada por Luís Costa Ribas.

terça-feira, janeiro 20, 2009

Aguardela
A memória de um concerto no Parque José Afonso na Amadora, com o relvado do jardim transformado num dos mais selvagens mosh pits onde já andei (brancos, pretos, porrada, roubo de chapéus e Doc Martens servidos em molho de testosterona suburbana) ao som de um acordeão. Sentiremos a ausência de João Aguardela.

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Mãos largas
O Primeiro Livro de Reis, no Velho Testamento, explica que a sabedoria de Salomão era incomparável: ultrapassava a dos egípcios e dos orientais; pronunciou três mil provérbios e mil e cinco poemas (mil e cinco, que número!); dissertou sobre árvores (desde o cedro do Líbano ao hissopo) e animais (aves, répteis e peixes).
Isto porque pouco tempo depois de chegar ao trono, sucedendo ao seu pai David, Salomão, em oração respondendo à oferta que Deus lhe daria aquilo que pedisse, optou por sabedoria. O próprio Senhor ficou surpreendido. Mãos largas para este rapaz!

Estive à conversa com o Francisco José Viegas na Antena 1 na passada 4ª-feira. Podem ouvir aqui.

sexta-feira, janeiro 16, 2009

Pernoitar VIII
O meu amigo Filipe Costa Almeida sugeriu uma adenda preciosa ao post de ontem: don't try that at home.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Pernoitar VII
Este frio que tem estado faz lembrar a velhice de David, em que não conseguia aquecer-se de modo algum. Os criados providenciaram então uma moça jovem e virgem que dormisse sobre ele. Abisague era o seu nome. Nunca o Rei a conheceu (ou em linguagem contemporânea e desinspirada, jamais teve relações sexuais com ela). A temperatura pode baixar mas a dignidade de um homem não tem de seguir o mesmo caminho.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

O caminho
Na vida há quatro caminhos possíveis. Ou se é o Paul McCartney, ou se é o John Lennon, ou se é o George Harrison, ou se é o Ringo Starr. A mim parece-me claro (mas isso digo eu que sou uma pessoa religiosa). O caminho certo é ser o George Harrison.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Às voltas com a pólvora
Há 10 anos a Jon Spencer Blues Explosion lançava "Acme", um disco exemplar. Uma porta escancarada para o soul e a música negra para muitos miúdos brancos nutridos em panque. Apesar do negrume étnico este é também um disco caucasiano, de auscultadores, de subtilezas de produção (a desafinação derridaniana entre as guitarras logo na primeira faixa, "Calvin", esclarece aquilo que o ouvinte pode esperar).
Com o talento de atenção saloia que os portugueses sempre manifestam também se gerou entre nós our own Jon Spencer division. Daí que sabe bem voltar à Palavra original e lembrar que uma explosão é uma explosão. Arrebenta. Os aprendizes de detonadores, às voltas com a pólvora, que aprendam.

segunda-feira, janeiro 12, 2009

Do sermão de ontem
O Evangelho de Marcos conta que quando João baptiza Jesus (Mateus, mais detalhado, dá conta da relutância do humilde Baptista mas logo Jesus explica que Lei é Lei e é para cumprir) desce o Espírito Santo em forma de pomba sobre o Mestre. O mesmo Espírito imediatamente impele Jesus para o deserto, onde Satanás o tentava, onde permanecia com as feras, onde os anjos o serviam. Quarenta dias.
O exemplo é claro e eloquente em relação ao que podem esperar os cristãos. É natural que a Igreja, assim que baptizada pelo Espírito, seja tentada por Satanás, permaneça com as feras mas seja também servida pelos anjos. O deserto povoado que nos pertence.

domingo, janeiro 11, 2009

Richard John Neuhaus partiu para o Senhor
Uma boa razão para interromper o Domingo e louvar o exemplo deste homem.
Cresceu luterano mas tornou-se católico e criou a melhor revista do mundo: a First Things.
Ler e chorar. Com consolo.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Pernoitar VI
As pessoas que nos agarrarão pelos colarinhos a confessar que viram o Diabo são aquelas que não julgaríamos a admitir a existência de Deus.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Pernoitar V
Desejos do meu amigo Paulo Ribeiro para 2009: "Espero engravidar a minha mulher".
Melhor é impossível.
Pernoitar IV


Como é que este disco só agora me chegou aos ouvidos?

quarta-feira, janeiro 07, 2009

Pernoitar III
É com alguma vergonha que confesso que só em 2008 aprendi de cor a oração do Pai Nosso. Os protestantes que têm tanto orgulho no seu conhecimento das Escrituras ainda desconfiam reactivamente a qualquer coisa que lhes pareça repetição, fórmula, ritual. Isso explica que tenha passado 31 anos conhecendo inúmeros factos sobre a oração que Jesus ensinou aos seus discípulos mas sem ousar sabê-la de trás para a frente.
Dois mil e nove só pode ser ainda melhor que dois mil e oito.

terça-feira, janeiro 06, 2009

Dia de Reis - pernoitar II
Já é sabido: em lugar algum nos diz a Palavra que os Magos eram Reis (muito menos nos dá nomes deles e quantos seriam). Eram astrónomos e estrangeiros de leste, duas condições que nunca abriram portas a ninguém.
Herodes e toda a Jerusalém ficaram irritadíssimos por receberem lições sobre as suas profecias daqueles estranhos. Simularam interesse no assunto e pediram aos teo-cientistas (uma respeitável profissão que o Iluminismo destruiu) que assim que encontrassem o menino lhes viessem dar conta. Valeu que o Espírito Santo em sonhos lhes instruísse que tomassem outro caminho de regresso. Tivessem os Magos sido abandonados às suas boas intenções e teriam colocado o ouro (e o incenso e a mirra) nas mãos dos bandidos.
O exemplo destes homens do Oriente persiste: muito estudo, muito trabalho e no fim adoração ao Deus verdadeiro.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Pernoitar
Reparem, nós protestantes não cremos em boas intenções. Não cremos em Lei Natural nem em virtudes intrínsecas. É por isso que quando Erasmo discutiu com Lutero, numa fase inicial da irritação do último com Roma, lhe apelou ao bom-senso e moderação. Erasmo, coberto de argumentos e sensatez, foi impotente perante a repugnância sentida pelo frade alemão. Debater era já parte da náusea. As boas maneiras são um luxo de quem crê que Adão e Eva ainda pernoitam ao relento no Éden e nessa medida os protestantes serão sempre irremediavelmente brutos.
O protestante dirá ao maior filantropo que tão somente a sua respiração é um insulto ao Criador. Com esforço conseguirá até pronunciar "bom dia" e "boa noite" mas pedir mais convívio é impensável. O protestante não suporta, de entre todo o tipo de pecadores, o de boas intenções.

sexta-feira, janeiro 02, 2009

Começar o ano em grande
Com uma frase do meu amigo Bruno Morgado:

"Fiz em 2008 algumas coisas boas mas não tenho testemunhas."